Uma análise do trabalho infantil à luz do ordenamento jurídico pátrio, bem como das inovações introduzidas pela EC nº 20/98 a qual, por meio da modificação do texto original do artigo 7°, XXXIII da Carta Magna, alterou para 16 anos a idade mínima para a admissão do jovem ao trabalho.
Após mais de 10 anos da aprovação da Emenda Constitucional n° 20/98, a mesma continua sendo alvo de extensas discussões, com posturas de autores favoráveis e contrários ao seu texto, o qual trouxe a “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 (dezoito) e de qualquer trabalho a menores de 16 (dezesseis) anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 (quatorze) anos”.
A Emenda em questão alterou o texto original do artigo 7°, XXXIII da Carta Magna, que permitia o trabalho a partir dos 14 anos completos, desde que o labor não fosse desempenhado em período noturno e a atividade não expusesse o trabalhador a agentes nocivos que pudessem representar risco à sua saúde ou segurança.
Com a nova redação, o parágrafo 3°, inciso I, do artigo 227 da Constituição, que estabelece a “idade mínima de 14 anos para admissão ao trabalho”, determina que seja “observado o disposto no artigo 7°, XXXIII”.
Em consonância com os dispositivos constitucionais supracitados, a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), no Capítulo IV (Da proteção do trabalho do menor), do Título III (Das normas especiais de tutela do trabalho), proíbe o trabalho de menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, nos termos da Emenda Constitucional 20/98. Já o parágrafo único do artigo 403 da CLT, alterado pela Lei 10.097/2000, veda a realização de trabalho em locais prejudiciais à formação da criança e do adolescente, bem como os que prejudiquem seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a frequência à escola.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), tendo substituído o antigo Código de Menores de 1979, regulamenta, nos artigos 60 a 69 e 240, a proteção ao trabalho infantil. O artigo 60 estatui ser “proibido qualquer trabalho a menores de 14 anos de idade, salvo na condição de aprendiz”. Percebe-se, pois, que o legislador do referido Estatuto não promoveu a necessária adequação à modificação decorrente da Emenda Constitucional 20/98.
Entretanto, o artigo 61 do mesmo Estatuto declara que “a proteção ao trabalho dos adolescentes é regulada por legislação especial, sem prejuízo do disposto nesta lei”, remetendo o intérprete para a CLT, a qual, conforme já elucidado, se adequou ao mandamento constitucional pela Lei 10.097/2000.
Além de toda a estrutura jurídica de que o Brasil dispõe para regulamentar o trabalho infantil, existem as Convenções da OIT (Organização Internacional do Trabalho), às quais o país deve obedecer, uma vez que foram devidamente ratificadas. Dentre as 61 Convenções e Recomendações da Organização destaca-se a Convenção 138, de 1973, que se ocupa da idade mínima para o ingresso em qualquer emprego, bem como a Recomendação 146.
Através do Decreto Legislativo 179, promulgado em 14 de dezembro de 1999, o Congresso Nacional aprovou os textos da Convenção 138 e da Recomendação 146 da OIT sobre idade mínima para admissão a emprego, adotadas em junho de 1973, em Genebra.
A supracitada Convenção entrou em vigor no Brasil em 28 de junho de 2002, após ter o Presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o artigo 84, inciso VIII da Constituição Federal, editado o Decreto nº 4.134, de 15 de fevereiro de 2002, o qual determina, em seu artigo 2°, que “para os efeitos do artigo 2°, item 1, da Convenção, fica estabelecido que a idade mínima para admissão a emprego ou trabalho é de 16 anos”.
Insta destacar, que a Convenção 138 da OIT não fixa idade mínima para a admissão ao trabalho, contudo permite que os Estados-membros especifiquem, por meio de declaração, a idade mínima para admissão no labor, desde que não seja inferior à idade de conclusão da escolaridade obrigatória ou, em qualquer circunstância, inferior a 15 anos (artigo 2°, § 3°). Abre, no entanto, uma ressalva: permite que, nas Nações cuja economia e condições de ensino não estiverem suficientemente desenvolvidas, estabeleça-se a idade de 14 anos como mínima (artigo 2°, parágrafo 4°).
Entretanto, a reserva trazida pelo parágrafo 4° alimentou vastas discussões acerca da postura adotada pelo Brasil, qual seja, de adotar idade mínima superior àquela preconizada pela Convenção Internacional -15 anos-, não obstante a ressalva que permite a fixação da idade mínima de 14 anos por países em desenvolvimento.
Arnaldo Sussekind, em seu livro Direito Constitucional do Trabalho, fez as seguintes críticas à elevação da idade mínima para 16 anos:
“Releva ponderar, neste passo, que a mais recente convenção da Organização Internacional do Trabalho sobre o tema (n. 138) fixou em 15 anos a idade mínima para o trabalho, facultando, todavia, ao país cuja economia e meios de educação estejam insuficientemente desenvolvidos, que este limite seja de 14 anos. Este, sem dúvida, é o caso do Brasil, o qual, paradoxalmente, e ao contrário do que se verifica em países plenamente desenvolvidos, estabeleceu a idade mínima para o trabalho em 16 anos, só admitindo contrato de aprendizagem a partir de 14 anos”.
Vê-se que a legislação brasileira volta-se cada vez mais para a proteção da criança e do adolescente, com o fito de impedir qualquer tipo de exploração da mão de obra infantil. Inevitável, no entanto, o surgimento de certa inquietação sobre o acerto, ou não, da elevação da idade mínima para os 16 anos. A miséria e a pobreza que assolam o país nos fazem concluir, por vezes, que o trabalho do adolescente em idade inferior ao mínimo legal seria necessário para contribuir com a subsistência da família. Entretanto, deixando de lado a triste realidade do Brasil e a situação de penúria em que vive grande parte da população, uma pergunta deve ser feita: será justo atribuir a um adolescente tal responsabilidade? Evidente que não.
Ao estabelecer a idade mínima de admissão ao emprego ou trabalho, o ordenamento jurídico brasileiro confere às crianças e aos adolescentes menores de 16 anos o direito de não trabalhar, pois, neste período do desenvolvimento humano, o trabalho interfere de forma negativa, impondo cargas que a pessoa não pode suportar sem o comprometimento de seu desenvolvimento físico, mental e intelectual. Nas palavras de Oris de Oliveira, em seu livro Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: “o não trabalho não é ócio pernicioso, mas deve ser preenchido com a educação, com a frequência à escola, com o brinquedo, com o exercício de ser criança”.
Todavia, mesmo atualmente, conscientizar a população sobre os benefícios de se proibir o trabalho daqueles que ainda não completaram 16 anos é tarefa extremamente árdua, especialmente entre as pessoas de gerações passadas, para as quais o labor precoce é aceito com mais tranquilidade. Com efeito, o menor de 16 anos não dispõe de condições físicas e psíquicas para o trabalho, ao contrário, este é o estágio da vida em que o adolescente precisa se dedicar aos estudos, ao lazer e ao aprendizado; enfim, se preparar para se tornar um cidadão pleno.
Ademais, em razão de sua natureza rotineira, mecânica e bruta, o trabalho precoce que as crianças exercem está longe de ser edificante e qualificador, na medida em que as impede de realizar as tarefas adequadas à sua idade: explorar o mundo, exercitar a imaginação, desenvolver as habilidades, entre outras.
Destarte, devem ser refutados todos os argumentos tendentes a justificar a necessidade do trabalho infantil, tais como: “Criança que trabalha fica mais esperta, aprende a lutar pela vida e tem condições de vencer profissionalmente quando adulta”; “o trabalho enobrece a criança”; “antes trabalhar que roubar”; “é melhor a criança trabalhar do que ficar na rua exposta ao crime e aos maus costumes”.
Equivocadamente, algumas pessoas costumam afirmar que a ociosidade em que permanecem os menores de 16 anos é fator preponderante para o aumento da criminalidade e da delinquência juvenil. Ora, não há como compactuar com tal assertiva, na medida em que, primeiramente, o menor de 16 anos não deve estar ocioso, mas sim frequentando as escolas e brincando e, caso isso não ocorra, aí sim haverá o incentivo à transgressão e à prática de ilícitos. O trabalho infantil priva a criança pobre das oportunidades que são oferecidas às outras, vez que, sem poder viver a infância estudando e brincando, a criança que trabalha não se prepara para a vida em sociedade, mas para eternizar o círculo vicioso da pobreza e da baixa instrução.
Salienta-se, outrossim, que em caso de utilização ilegal do trabalho de menores de 16 anos, não obstante o caráter irregular que reveste a contratação, o menor fará jus à remuneração pelo serviço prestado, sob pena de enriquecimento ilícito do empregador infrator. Portanto, o contrato, apesar de nulo, gera efeitos, inviabilizando devolver-se o menor trabalhador ao status quo ante.
Acerca da Teoria Trabalhista de Nulidades, Mauricio Godinho, em seu livro Curso de Direito do Trabalho, faz a seguinte ponderação:
“O Direito do Trabalho é distinto, neste aspecto. Aqui vigora, em contrapartida, como regra geral, o critério da irretroação da nulidade decretada, a regra do efeito ex nunc da decretação judicial da nulidade percebida. Verificada a nulidade comprometedora do conjunto do contrato, este, apenas a partir de então, é que deverá ser suprimido do mundo sócio-jurídico; respeitando-se, portanto, a situação fático-jurídica já vivenciada. Segundo a diretriz trabalhista, o contrato tido como nulo ensejará todos os efeitos jurídicos até o instante de decretação da nulidade – que terá, desse modo, o condão apenas de inviabilizar a produção de novas repercussões jurídicas, em face da anulação do pacto vivenciado. (…) Tratando-se de trabalho empregatício prestado por menor de 16 anos (ou 14, antes da EC 20, de 15.12.98), cabe o reconhecimento de todos os efeitos justrabalhistas ao contrato irregularmente celebrado. É verdade que deverá o juiz, ao mesmo tempo, decretar a nulidade desde então (se o menor ainda estiver abaixo de 16 anos – salvo o aprendiz – na época do exame judicial, evidentemente)”.
Vale ressaltar, que a jurisprudência em relação às nulidades é pacífica. No processo do TST/RR 449.878/95.5, que teve como relatora a ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, de 03/04/200, lê-se, por exemplo, a seguinte decisão: “Seria incompatível com os princípios da primazia da realidade e da proteção negar, por completo, eficácia jurídica ao contrato celebrado entre as Partes, em razão da menoridade do Reclamante. (…) Assim, o empregador que se beneficia dos serviços prestados pelo empregado menor deve arcar com os encargos correspondentes ao contrato de trabalho”.
Urge esclarecer, ainda, que ao adolescente que ainda não completou 16 anos, é assegurado o direito ao trabalho na condição de aprendiz (a partir dos 14 anos), auferindo o salário mínimo hora, salvo condição mais favorável (artigo 428, parágrafo 2°, da CLT). Isto quer significar que a aprendizagem é uma solução viável para os adolescentes que necessitam da renda proveniente do trabalho para a complementação do orçamento doméstico sem, no entanto, colocarem em risco a sua formação pessoal.
A fixação da nova idade mínima para o trabalho deve ser entendida, em última análise, como iniciativa de natureza protetiva ao adolescente e à criança, constituindo parte integrante do conjunto de ações e compromissos político-jurídicos, de tendência mundial, que visam propiciar, de um lado, maior espaço e incentivo à educação fundamental e, de outro, condições mais hábeis à formação e qualificação profissional.
A educação deve, pois, ser encarada como o único caminho para a diminuição da desigualdade social, como de fato o é, não podendo ser aceito que qualquer adolescente desenvolva trabalho demasiadamente árduo ou que o impeça de frequentar regularmente a escola, o que lhe dará maior chance de colocação no mercado de trabalho quando adulto.
Em que pese a inegável relevância da promoção do ensino de qualidade para o futuro de uma Nação, o que inclui a proibição da execução de trabalho por menores de 16 anos, no caso do Brasil existem algumas particularidades que não podem ser ignoradas. Necessário encarar a triste realidade do ensino público no Brasil, o qual possui nível internacional dos mais baixos, equiparado ao da Albânia, país mais pobre do continente europeu.
Diante da falta de investimento do Poder Publico na área da educação, lamentavelmente conclui-se que a situação permanecerá inalterada, com grande parte das crianças e adolescentes fora das escolas e, os que lá estão, continuarão com baixos rendimentos, haja vista a carência de condições físicas e materiais dos estabelecimentos de ensino, além dos baixos salários dos professores, o que certamente não incentiva os profissionais a contribuírem para a promoção de ensino público de qualidade neste país.
De fato, a esperança para a solução das mazelas do Brasil se encontra na educação, devendo o Poder Público conjugar a legislação proibitiva da exploração da mão de obra infantil, com medidas efetivas de melhora da condição do ensino público, através de investimentos na educação. Caso não se ultimem as necessárias modificações tanto nas políticas públicas educacionais, quanto na mentalidade dos governantes, o país verá aumentar o abismo existente entre os ensinos público e privado, agravando, ato contínuo, a desigualdade social.