O estado de calamidade pública decorrente da pandemia por Covid-19 já se arrasta por mais de noventa dias, acarretando uma crise cuja duração e intensidade ainda não podem ser mensuradas.
Diante de tantas indefinições e desafios, a preocupação com a economia é legítima e urgente, pois é através do mercado que as riquezas são produzidas e repartidas, refletindo diretamente no bem estar social.
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho, na livre iniciativa, na função social da propriedade, na defesa dos consumidores e na repressão ao abuso do poder econômico, busca garantir que, em situação de normalidade, o mercado funcione harmoniosamente por meio dos instrumentos contratuais, da arrecadação tributária, da legislação trabalhista, concorrencial etc.
No entanto, em tempos de crise, permite-se, em caráter extraordinário, que o Estado atue de forma mais intervencionista para tentar manter o equilíbrio das relações, inclusive mediante a propositura de regimes especiais e temporários que regulam as relações privadas.
É nesse contexto que, em 12 de junho último, após 85 dias do reconhecimento do estado de calamidade pública em decorrência da pandemia por Covid-19, foi promulgada, com vetos, a Lei Federal nº 14.010/20, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus (RJET). Tal norma fixa o dia 20 de março de 2020 como termo inicial dos eventos derivados da crise sanitária e traz, em seu Artigo 14, regramentos excepcionais para o Direito da Concorrência.
Através do RJET ficam suspensas algumas práticas tidas normalmente como anticoncorrenciais a fim de, supostamente, atender às necessidades da escassez de serviços e produtos. Além disso, conforme justificação do Projeto de Lei que lhe deu origem, pretendeu-se criar um parâmetro para que outras práticas não sejam consideradas ilícitas dada a criticidade inerente ao período da pandemia.
Embora se reconheça a boa intenção do legislador, cumpre destacar que a urgência da situação não pode suprimir uma análise técnica e criteriosa do sistema antitruste vigente para que eventual comando excepcional que pretenda interferir na economia seja, ao mesmo tempo, assertivo e amparado na racionalidade do mercado. A relativização do regime concorrencial estatuído deve se dar de forma a adaptar o sistema para melhor responder à crise sem, contudo, afrouxar ou enfraquecer a atuação do CADE.
Ao suspender a eficácia de condutas específicas exemplificadas na legislação antitruste, o RJET demonstra duvidosa técnica legislativa, pois cediço que a tipicidade do ilícito concorrencial é aberta e exige interpretação sistemática dos pressupostos da conduta e de seus efeitos anticompetitivos.
Ademais, dispensar a análise prévia, pelo CADE, de determinados atos de concentração não se mostra conveniente, eis que, para além de atribuir à Autoridade antitruste o ônus desproporcional de fiscalizar, a posteriori, operações que não lhe foram sequer notificadas, é solução que a legislação não emergencial já prevê em situações específicas, as quais, cumpre dizer, são extremamente raras em razão da dificuldade da implementação.
Daí que o RJET, no que tange ao regime concorrencial, transita entre a inocuidade e a insegurança jurídica, assinalando um indesejável e inconveniente afrouxamento do controle antitruste, podendo, por isso mesmo, agravar os malfadados efeitos da crise que vivenciamos.
Ao propor alterações para a política concorrencial, as autoridades devem olhar para o processo competitivo a partir de uma perspectiva mais dinâmica e de longo prazo. Afinal, a crise passará, mas os efeitos dos atos excepcionais realizados durante sua existência, poderão se perpetuar e causar grandes distorções no mercado.
Por isso, sem desprezar a necessidade de encontrar soluções céleres para atender ao momento singular, a suspensão da exigibilidade de notificação prévia ao CADE de atos de concentração pode ser incompatível com a “ratio” mercadológica e causar mais danos do que benefícios.
Por outro lado, também chama a atenção que não se tenha tratado de uma das questões mais preocupantes no atual momento, discutida em todo o mundo, que é a coordenação entre agentes econômicos. Sabe-se que o cenário é propício a que concorrentes unam esforços em torno de interesses comuns, que bem se justificam na conjuntura atual, sobretudo para que se evite escassez e que se garanta a oferta de bens e serviços essenciais.
O RJET comprova, portanto, que aqui no Brasil procura-se sempre resolver situações concretas através de leis. Parece que o legislador parte do princípio de que as autoridades de concorrência não têm capacidade de resolver casos concretos, analisando a especificidade de cada caso. E o CADE já comprovou sua competência diversas vezes, inclusive durante a atual situação de calamidade, ao autorizar recentemente a colaboração entre um grupo de empresas concorrentes como medida para minimizar os efeitos da crise, chamado “Movimento Nós”.
Nesse contexto, cumpre ao CADE continuar a atuar proativamente e apresentar para as empresas medidas de enfrentamento da crise para que a economia sobreviva.
Artigo publicado no Diário do Comércio em 03/07/2020